Dos 50 anos de vida da pedagoga Vanessa Beco, ao menos 41 deles foram dedicados ao cuidado. Ainda criança, aos 9, começou a realizar atividades domésticas na casa de vizinhas para complementar a renda da família. No fim da adolescência, se tornou mãe. E criou dois filhos enquanto cuidava da casa e era referência para a família – sozinha, após o término com o companheiro. Vanessa é uma das tantas mulheres que são obrigadas a abrir mão de si mesmas para ser o porto-seguro da própria rede de apoio e da dos outros também.
A conta é desigual: enquanto as mulheres gastam cerca de 21,3 horas semanais para o trabalho do cuidado – o tempo de um serviço de meio período –, os homens ficam com pouco mais que a metade, 11,7 horas, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua de 2022, divulgada neste ano.
Para se ter uma ideia, o homem gasta mais tempo (14,3 horas semanais) em cuidados da casa quando mora sozinho. O contrário do que acontece com as mulheres, que se dedicam 4 horas a mais aos afazeres do cuidado quando dividem o lar (24,1 horas semanais).
O caso de Vanessa, enquanto mulher negra, é o mais comum. O levantamento do IBGE no estado de Minas Gerais indica que as mineiras pretas são as que mais se dedicam ao cuidado (97%). Seguidas por aquelas que se identificam como pardas (95%) e, então, pelas brancas (92%).
“Lembro da tristeza da minha avó quando tive que sair de casa para fazer trabalho doméstico, ainda criança. Tive que parar de estudar. E, jovem, com dois filhos pequenos, me virava para fazer renda e cuidar dos pequenos. Foi uma batalha para que conseguisse voltar a estudar. Venho de uma camada social muito vulnerável e a geração de mulheres antes de mim também viveu assim. Meu orgulho é dizer que minha filha foi a primeira que não precisou trabalhar com faxina”, conta.
Com o passar do anos, o cuidado não deixou de ser central na vida de Beco, e virou não só uma, mas duas formas de trabalho: como pedagoga e como conselheira tutelar, se responsabilizando por crianças e adolescentes. Sua rotina, na verdade, não exclui ninguém que precisa. “Hoje mesmo (6/11), antes de ir ao trabalho, às 7h, peguei meu neto para levar até a creche. Em outros momentos, minha irmã colabora. Nós nos desdobramos como dá”, continua.
Para Vanessa, pensar em ter o seu esforço remunerado parece um sonho distante. “Com o envelhecimento, vou refletindo mais sobre isso. Viver com qualidade é uma preocupação e, apesar de tanto cuidado, tanto trabalho, não tenho como aposentar. Uma vida toda trabalhando para os outros”, reflete.
Trabalho do cuidado: o que é?
De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho do cuidado é realizado pelo contato direto com outras pessoas, como cuidar de um doente ou alimentar um bebê, ou por ações indiretas, como cozinhar e limpar. E independe de remuneração. A invisibilidade do cuidado realizado pelas mulheres foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, mas o assunto é tão antigo quanto o próprio ato de cuidar.
“As atividades de cuidados e as atividades domésticas se misturam com uma certa construção do que seria o amor. O feminino é vinculado a esse mito de que existe uma capacidade natural da mulher de exercer o cuidado. Conhecemos algumas frases como ‘Quem Ama, Cuida’ que mostram essa romantização”, avalia a pesquisadora em gênero e sexualidade da UFMG, Juliana Gonçalves.
A especialista reforça que, no entanto, a responsabilidade de cuidar dos filhos, dos pais, da comunidade e até das famílias dos outros não retorna à mulher o tempo, a verba e o esforço físico e mental gastos. Enquanto isso, de acordo com ela, as mulheres se afastam do crescimento profissional e acumulam problemas de saúde devido a falta de cuidado com elas mesmas.
“Se as mulheres fazem tripla jornada, e gastam mais de 20 horas com o cuidado, falta tempo. Seja para participação política, qualificação profissional, ou até para descansar. E tempo livre é autonomia”, avalia. “Sem contar na carga mental, a exaustão que isso gera. A mulher está trabalhando, mas está pensando no lanche para o filho, pensando em fazer compras para a casa. Como dar conta de tudo?”, questiona.
Diferentes realidades, o mesmo problema
A pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, Isabelle Chagas, destaca que a questão do cuidado é intensificada para a mulher a partir da entrada no mercado de trabalho. E isso acontece de formas diferentes para cada grupo social. “Enquanto a mulher vive um pico de dedicação ao cuidado aos 30 anos, com a intensificação do profissional, o homem quase não tem mudança nenhuma no esforço ao cuidado ao longo de toda a vida”, afirma.
“Para as mulheres que têm uma situação econômica melhor, a falta de tempo é resolvida com a contratação de outras mulheres para cuidarem da casa e dos filhos. Mas não quer dizer que o esforço delas acaba, são elas que organizam, contratam e se responsabilizam pelos cuidados”, continua a especialista, que também é doutoranda em Ciências Sociais.
Por outro lado, as mulheres negras sempre estiveram trabalhando e no centro do cuidado. Um resquício, de acordo com Isabelle, da época colonial. “Ao contrário das mulheres brancas, que viveram uma entrada no mercado de trabalho, as negras sempre estiveram trabalhando, desde a escravidão. Essas mulheres saíram de suas casas para cuidar dos filhos, da casa e da alimentação das outras famílias, e, até hoje, tem esse trabalho invisibilizado”, avalia. Isso explica o fato de mulheres pretas estarem à frente do trabalho do cuidado na pesquisa do IBGE.
Dois filhos, vários trabalhos, e o malabarismo do cuidado
Um dia precisa de mais de 24 horas para Larissa Amorim Borges. Mãe de duas crianças, Enzo Daniel, de 7 anos, e Elis Eloá, de 6, sua rotina precisa caber, além do cuidado com os filhos e a rotina da casa, os serviços como psicóloga, escritora e palestrante. “Minha rotina começa antes das 5h, antes das crianças acordarem. Depois, arrumo elas, deixo na escola, e vou trabalhar, com todos os projetos que me envolvo. Ainda tenho o cuidado com a casa, com meu pai, que está internado, e os serviços aos finais de semana. É sempre essa correria”, conta.
Assim como Vanessa Beco, Larissa também foi atravessada pelo cuidado como uma realidade “desde sempre”. “Historicamente, as mulheres da minha família cumprem esse papel de cuidado. Nós viemos cuidando uma das outras, do nosso núcleo familiar, dos vizinhos, desde que eu me entendo por gente”, diz. Como irmã mais velha, Larissa aprendeu cedo a estar disponível. E, com isso, também a abrir mão de outras possibilidades.
“Nossa opção é cuidar, seja das crianças ou dos parentes mais idosos e adoecidos. É uma sobrecarga de tempo e energia, como também de recursos. O tempo que estou cuidando, eu deixo de trabalhar fora, e perco a remuneração. Isso também está ligado ao empobrecimento”, lamenta.
Política Nacional de Cuidados
O Governo Federal montou um grupo de trabalho para elaboração de uma Política Nacional de Cuidados. Veja as propostas que estão em debate:
- Ampliação da licença-maternidade para mães que estão fora do mercado de trabalho e do tempo de licença-paternidade para trabalhadores de carteira assinada;
- Instituição de uma licença-parental, que seria um período de afastamento a ser dividido entre os pais ou responsáveis legais da criança;
- Ampliação do acesso à creche para 50% das crianças de 0 a 3 anos. Atualmente, essa cobertura está em 35% no Brasil;
- Ampliação da escola em tempo integral desde o Ensino Fundamental, como forma de evitar que mulheres tenham que abdicar de trabalho ou carreira para cuidar dos filhos.
Da Redação Na Rua News